Famílias de autistas receberam e-mail informando “prejuízos acumulados” às operadoras e com o cancelamento unilateral dos planos de saúde
Foi desesperador para Bruna Souza receber a mensagem de que a filha autista, Aurora, 7, teria o plano de saúde cancelado em 30 dias. A mãe estava no hospital com uma forte enxaqueca no momento em que abriu a caixa de entrada do e-mail informando que o acompanhamento da criança estava muito caro e que será cancelado a partir de 1º de junho de 2024. A possibilidade de a filha ficar sem convênio médico foi tão assustadora que ela teve uma crise de ansiedade na hora, precisando de internação.
O caso de Aurora não é o único. Apenas de janeiro a abril deste ano, a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) recebeu mais de 300 denúncias de familiares de autistas informando sobre o cancelamento unilateral do plano de saúde, inclusive de crianças em tratamento. O número de casos no DF, contudo, deve ser bem maior.
É que a defensoria só atende pessoas em que a renda é de até cinco salários mínimos, o que resulta na contratação de advogados particulares por pessoas que não se encontram nesse número. Além disso, casos envolvendo menores de idade podem estar em segredo de Justiça, que também não permitem uma contabilidade exata da situação.
Os 300 casos em apenas quatro meses do ano evidenciam uma situação de angústia e aflição vivida pelas famílias de pessoas consideradas “caras” demais para ter acesso a um tratamento contínuo pelos convênios.
Como funciona os palnos de saúde
As normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) definem três modalidades de plano de saúde: individual ou familiar; coletivo empresarial e coletivo por adesão. O plano individual é firmado diretamente entre o beneficiário e a operadora de saúde. A rescisão do contrato só ocorre em caso de fraude ou de falta de pagamento.
No modelo empresarial, o contrato é firmado por intermédio de uma empresa, que é um CNPJ. Dessa forma, é possível rescindir por vontade da operadora, apenas uma vez ao ano e no aniversário do contrato. É necessário avisar com 60 dias de antecedência e informar o motivo da rescisão.
O beneficiário de plano de saúde coletivo empresarial demitido sem justa causa ou que decidiu se aposentar tem direito a manter o plano de saúde oferecido pela empresa se contribuiu mensalmente para o pagamento do plano de saúde. Para isso, o beneficiário deve apresentar o interesse em 30 dias após o aviso prévio ou a aposentadoria.
Nos casos de planos coletivos por adesão, que é o das famílias citadas na matéria, o acordo é feito por intermédio de uma administradora do plano de saúde. Nesses casos, a empresa faz parceria com entidades de classe para reunir as pessoas em um grupo. No caso da criança Aurora, ela ficou inserida na categoria estudantes, por exemplo.
Com um certo número de pessoas em um grupo, a administradora negocia com a operadora, possibilitando a quem contrata acesso a planos com maior economia. No entanto, novamente, o contrato é feito por um intermédio de uma empresa, que fecha o acordo com a operadora de saúde via CNPJ, terceirizando os contratos.
Dessa forma novamente, a operadora pode rescindir por vontade da operadora. O que aconteceu no caso de Bruna, Erick, Nicolle, Lucas é que a família precisa de um plano completo, com necessidade de diversas especialidades incluídas. Para ser acessível financeiramente, eles optaram pelo plano coletivo por adesão feito pelo intermédio das administradoras e, assim, mais suscetível a quebras unilaterais.
“Nunca recebi uma reclamação de gente que chega aqui reclamando que foi excluída de um plano de saúde e a pessoa está saudável. É sempre alguém que apresenta custo para a operadora”, declarou o coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do DF, Antônio Carlos Cintra.
“Ultimamente, a busca tem sido enorme em situações envolvendo familiares de autistas. Só hoje atendi três mães com a mesma queixa”, declarou o defensor. A entrevista foi feita em 7 de maio.
Segundo Cintra, não são apenas casos de autismo com o convênio cancelado unilateralmente que chegam à Defensoria. Mulheres grávidas, doenças que vão apresentar custos a longo prazo ou necessidade de cirurgia. A defensoria atende apenas pessoas com, no máximo, cinco salários mínimos. Isso significa que as mulheres grávidas com o plano negado atendidas pela Defensoria raramente têm condições financeiras para pagar por um parto particularmente e vem esse acesso negado.
Cintra explicou o contexto de quando foi criada a lei dos planos de saúde, em 1998, e como ao longo do tempo foram encontradas “brechas” na relação cliente e operadora. “Foi pensando que é necessário tratar de forma diferente um contratante individual daqueles que são contratantes coletivos. O que se imaginou é que um contratante individual é mais fraco na relação com o plano de saúde, chamada de de vulnerabilidade do consumidor e, portanto, é necessária uma proteção maior. Diferente de uma empresa que tem uma quantidade enorme de funcionários ou de uma associação que se junta e aí se faz um contrato coletivo de plano de saúde, que é porque essas pessoas, num grupo enorme, elas têm força”, contextualizou.
Inicialmente, essa modalidade do coletivo era pensada para pessoas que se conhecem ou que têm alguma relação em comum. Ao longo dos anos, surgiram as administradoras que unem pessoas que não se conhecem ou que não tem relações, por exemplo no caso de estudantes, e englobam todas em uma parcela. O reajuste também pode ser feito sem necessariamente seguir a tabela da ANS, apenas com a apresentação de que aumentaram os custos para os serviços.
AMIL
Em nota, a operadora de saúde Amil informou que está em processo de reformular a grade de produtos com modelos que assegurem qualidade de assistência e sustentabilidade de contratos. Os planos coletivos por adesão, disponibilizados pelas administradoras de benefícios, têm sido revista.
“Como desdobramento, está em curso o cancelamento de um conjunto de contratos da Amil com administradoras de benefícios, especificamente os que demonstram desequilíbrio extremo entre receita e despesa há pelo menos três anos. A Amil iniciou a comunicação da mudança às administradoras de benefícios impactadas no dia 18 de março, reiterando que a manutenção das coberturas seguirá os prazos contratuais”, destacou em nota.